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"É preciso mudar a forma como falamos com as mães." - Patrícia Paiva

Segunda-feira, 08.05.17

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 "Estava feliz, era o dia do aniversário do meu filho e estava grávida, algo que já desejava há muito e que demorou a concretizar, mas naquele momento estava feliz. Ao longo da festa, sempre que o meu filho passava por mim, dava-me um beijinho ou uma festinha na barriga, tudo muito disfarçadamente porque ainda era cedo e ainda era um segredo da família mais próxima. 

Ao final do dia, quando cheguei a casa da festa fui à casa de banho e tinha sangramento, tentei ficar calma mas acho que de certa forma já sabia o que aquilo significava. Há uns dias que os sintomas iniciais que cedo se fizeram sentir tinham parado de repente, e aquele sangramento veio apenas confirmar algo que o meu corpo já me estava a dizer há algum tempo. 
Sem pensar duas vezes, fui para o hospital, e assim que a médica fez a eco disse logo que não tinha batimentos cardíacos e que parecia ter parado o desenvolvimento por volta das 6 semanas, pelo tamanho do feto. Não me deu nenhuma certeza, pediu-me para aguardar 15 dias e depois voltar para ver o que tinha acontecido. 
Voltei a casa já com a certeza que estava a passar por uma perda gestacional, e que a minha suspeita de que algo não estaria bem há já duas semanas confirmava-se. No dia seguinte fui ao centro de saúde pedir baixa, durante a noite já tinha tido dores e principalmente psicologicamente não estava em condições de ir trabalhar.
O médico ficou um pouco atrapalhado, deu para perceber que não tinha muito contacto com esta realidade, mas passou logo a baixa para 15 dias e depois logo se via se era preciso mais. Aproveitei que estava no centro de saúde e fui desmarcar a próxima consulta de gravidez, indicando que tinha perdido o meu bebé. 
Nos dias seguintes, o sangramento e as dores aumentaram, o meu corpo foi gentil e fez o que tinha de fazer, e de certa forma fiquei grata por isso pois queria evitar intervenções. 
Conforme fui falando com algumas amigas que tinham passado pelo mesmo, fui sabendo de histórias tão tristes como a minha e uma das minhas amigas disse-me que nem lhe deram baixa, simplesmente disseram que tinha de ir trabalhar no dia seguinte porque era algo que acontecia, era natural... Não sei como teria conseguido ir trabalhar, depois de noites passadas a chorar e uma dor física e emocional tão forte. Essa mesma amiga referiu-me que a baixa era paga a 100%, mas na altura nem liguei muito a isso. 
Chegou o dia de voltar ao hospital e ainda na triagem, a enfermeira deu-me os parabéns, estava quase a chegar às 12 semanas, e eu nem fui capaz de dizer nada... Entrei, fiz nova ecografia e tinha o útero limpo, pelo que se confirmava a perda gestacional que eu já sabia ter acontecido. 
O tempo foi passando, regressei ao trabalho passados os 15 dias de baixa e aos poucos fui voltando a ser eu. 
Quando recebi o valor da baixa, verifiquei que não tinha recebido os tais 100% e decidi ligar para a segurança social para perceber o que se tinha passado. Na linha disseram-me que a minha baixa era por doença natural, e não por interrupção da gravidez pelo que estava correta, eu insisti que não estava correta a informação e a senhora da linha disse que eu deveria ter tido atenção a isso. Eu, que naquele dia estava a perder o meu bebé, que naquele dia vi um sonho meu a escapar-me pelos dedos, devia ter verificado se o médico colocou a cruz no sítio certo... Entretanto, depois de eu não aceitar aquela resposta, lá me disseram para enviar os papéis do hospital e todos os comprovativos que tinha, que a situação seria analisada, e foi o que fiz. 
No mês seguinte ligaram do centro de saúde para adiar a minha consulta de gravidez, eu tinha feito o esforço de ir lá informar que a gravidez não tinha evoluído para evitar estas situações e de nada serviu. Lá tive de explicar tudo outra vez e o resto do dia foi passado a evitar o choro no trabalho. 
Passado mais um mês recebo resposta da segurança social, indicando que seria necessário enviar o papel da baixa corrigido. Depois de muitas tentativas telefónicas para o centro de saúde, sem sucesso, enviei um email onde expliquei toda a situação, e a resposta que recebi foi que o aborto apenas foi confirmado quando voltei ao hospital 15 dias depois e só nessa altura é que teria direito à baixa por interrupção da gravidez. Sempre que falei ao telefone para a segurança social ou para o centro de saúde, eu falava em perda, e eles do lado de lá respondiam sempre com as palavras aborto ou interrupção da gravidez, são só palavras, mas são palavras que custam ouvir... 
Não aceitei a resposta que me deram, e nem era pela questão do dinheiro, mas sim pela situação em si, não fazia sentido o que me estavam a dizer, pelo que voltei ao centro de saúde e pedi consulta com o mesmo médico que me passou a baixa, com o intuito de pedir a correção. Ainda no atendimento do centro de saúde, viram o meu boletim de grávida e voltaram a dar os parabéns, só quando abriram a minha ficha é que lamentaram a situação, mais uma vez. Já tinham passado alguns meses e o médico já não se lembrava de mim, mas depois de explicar tudo e de lhe dar os papéis do hospital a resposta que me deu foi a mesma que me tinham dado no email: a confirmação da interrupção da gravidez apenas se tinha dado depois dos 15 dias pelo que a baixa tinha sido bem passada. Já com as lágrimas nos olhos disse que comecei a perder o meu bebé no dia em que fui ao hospital, e que só lá voltei a pedido da médica para confirmar se estava tudo bem e o médico respondeu-me que isso era muito relativo! Relativo?!? Eu sabia em que dia tinha perdido o meu bebé, era impossível esquecer e o médico diz-me que é relativo? Tentei manter a calma e conter as lágrimas e voltei a explicar tudo, o mais calmamente que consegui. Aí, o médico saiu, foi falar com outro médico na sala ao lado e voltou já com o papel da baixa para corrigir, finalmente. 
Já enviei todos os papéis para a segurança social e aguardo a correção do valor pago, mas não podia deixar de dar este meu testemunho e pedir mais sensibilidade na forma como se fala, com todas as mães, e também com aquelas que perderam os seus filhos!

Patrícia Paiva"

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publicado por Associação Projecto Artémis® às 10:34


1 comentário

De Marta a 09.05.2017 às 02:04

A mim aconteceu-me exactamente o mesmo só que já há 10 anos atrás! Passaram-me apenas 12 dias (os quais nao foram pagos a 100%) e infelizmente, terminados esses dias mandaram-me trabalhar sem o processo estar terminado, e sem terem em consideração a minha profissão da altura (educadora de infância)... decorridos 3 dias após reiniciar o trabalho tive uma hemorragia, no local de trabalho, de tal tamanho que o médico que me atendeu no hospital ficou atónito com o que viu e pediu-me logo o nome do médico que me tinha acompanhado porque nao queria ir para tribunal se a coisa desse para o torto!!!! Disse que aquilo tinha sido um atentado contra a condição feminina, que estes procedimentos nao podem de forma nenhuma serem feitos sem acompamhamento médico e hospitalar e que se ele visse algum colega tratar daquela forma uma situação daquelas era ele mesmo que iria fazer queixa!!!! Infelizmente eu tive de fazer a curetagem e só aí me passaram a baixa dos 30 dias paga a 100%, sendo que só aí tive conhecimento de que esta situação tem uma baixa específica! Numa das vezes que fui ao hospital tiveram a coragem de me pôr à espera em frente a uma grávida que estava a fazer o ctg prestes a ter o bebé! Indecente para mim e para a grávida! !! Infelizmente teria muita cousa para contar pois passei por esta situação 3 vezes e aconteceram sempre situações tristes na forma como fui atendida... Muita força para ultrapassar esta fase que eu sei que é muito difícil!

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Espaço de partilha com objectivo de diminuir a falta de informação técnica e emocional a mulheres que vivenciam o luto da perda de um bebé ao longo da gravidez, bem como quebrar o Pacto de Silêncio resultante de todo esse processo de luto na Perda Gestacional.


Direcção A-PA

projectoartemis Sandra Cunha, Psicóloga desde 2005 da Associação Projecto Artémis, tem vindo a desenvolver o seu trabalho desde essa data na área da Perda Gestacional. Desde Junho de 2011 está como Presidente da Associação Projecto Artémis, procurando quebrar o silêncio, alienado o seu conhecimento técnico com o da realidade da perda de um filho. Perdeu um bebé em 2007, após 2 anos de trabalho como psicóloga da Artémis, o que lhe permitiu reunir à técnica o conhecimento árdua de ter vivido na pele a perda de um filho.

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