Consultório de Perda Gestacional
Espaço de partilha com objectivo de diminuir a falta de informação técnica e emocional a mulheres que vivenciam o luto da perda de um bebé ao longo da gravidez, bem como quebrar o Pacto de Silêncio resultante de todo esse processo de luto na Perda G
Perda Gestacional: Um problema social?
Pensar na perda gestacional nas suas várias dimensões leva-nos a considerar diversos grupos que estão intrinsecamente relacionados com este tipo de perda. A mulher mantém-se como pilar central onde se gera a criança desejada e é a partir desta que surgem os primeiros sinais de dor quando o sonho se desvanece.
A partir destes sinais ouvem-se os ecos da sociedade, surgem períodos de mudanças nas diversas relações sejam estas familiares, entre colegas de trabalho ou outras pessoas próximas que estejam inseridas nos círculos sociais de determinada pessoa. Após a perda o regresso ao trabalho é diferente, mudam os olhares, mudam as palavras, muda muita coisa. Muda a relação com o seu corpo porque perdeu um pouco de si, mudam os sonhos e procuram-se novos portos de abrigo. A própria família sofre um abalo porque sente a perda de um dos "seus". Em qualquer uma destas estruturas vão ocorrendo alterações nas relações através da variação na proximidade e no afastamento – por exemplo no seio do casal pode sair reforçada a solidariedade primária assim como se podem verificar situações de conflito. Uma gravidez provoca a mudança numa determinada estrutura social, assim como a morte de um filho gera mudanças e poderá eventualmente levar à ruptura de laços. Quando a mulher sente que a sociedade não lhe dá respostas nem vê nela fonte de um sentido para a vida, essa mesma mulher arrisca-se
a concentrar em si as expectativas e crenças afundadas por depressões e outras fragilidades.
Existem várias formas de olhar para a perda gestacional, mas todas elas devem-se complementar no esforço de amparar todos aqueles que passam por um período de luto e dor. Seja o olhar do médico, linguagem
mais técnica e tradicionalmente debruçada no corpo, seja um olhar mais social e aberto a todos, um lado humano e abrangente (ex. associações etc.). Quando aqui falámos em “social” não é apenas para exercer uma leitura do que rodeia a mulher e a sua perda, mas também para escrever que este "social" deve ser um corpo activo, interveniente e responsável. Não devemos pensar que perder um filho se esgota num sofrimento privado, há também o sofrimento colectivo aquando a morte de alguém, verificado através dos rituais e outras manifestações colectivas como o luto. Em relação aqueles que estão mais próximos, o luto colectivo tende a não perdurar muito no tempo porque as pessoas querem afastar a dor o mais rápido possível, no entanto para a mulher as marcas são mais difíceis de ultrapassar. Quando falámos de dor pensámos logo num sintoma físico, associado ao corpo, mas esta tem também repercussões a nível psicológico e social. No que diz respeito à componente social, o sofrimento mexe com diversos grupos, não se mantém numa cela
A sociedade deve ter uma componente de entreajuda, uma dimensão social que não se deve esgotar quando falámos de perda gestacional. Se a sociedade ocidental actual insiste no hedonismo e em tornar tabu a morte, a doença, a perda, não devemos virar costas aqueles que em determinado momento das suas vidas perdem um pouco de si, mas continuam vivas, pelo menos têm de aprender a voltar a lutar e a acreditar. A perda gestacional não pode ser vista como menor por se tratar de uma criança que parte prematuramente – a verdade é que temos que considerar a ligação desta criança através da mulher/mãe que
desde cedo já sente vida a palpitar dentro de si. A gravidez apresenta-se na forma de uma barriga que atrai sorrisos e aproxima as pessoas, seria pouco sensato assumir que o eclipsar dessa “luz” provoque o afastamento dessas pessoas. O luto é dos processos mais duros da nossa existência, uma fase em que escrevemos novas questões e onde nos sentimos presos a um passado e um presente que sofreu um duro golpe. A partir desse ponto onde se exige um “recomeçar” é preciso aprender a aceitar o amanhã como reserva de esperança. A sociedade é também reserva de esperança e havendo portas abertas é o ideal para que nos sintamos parte de algo, encontremos um sentido que nos ajudará a projectar a nossa esfera pessoal no futuro, redesenhando novos sonhos.
Dr. Pedro Nunes, sociólogo