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Aborto e aborto recorrente: implicações psico-sociais

Quarta-feira, 12.08.09

 

Psicologia da gravidez

“Uma gravidez inicia-se psicologicamente muito antes de se manifestar fisicamente”. Durante os 9 meses de gravidez, os futuros pais caminham, de modo único e individual, em direcção à maternidade e paternidade. Ainda antes de estarem 'grávidos', muitos casais começam a pensar sobre o desejo de terem filhos ou sobre a sua vida futura com ou sem filhos. Estas ideias, fantasias e sonhos sobre a vida futura com uma criança, ganham mais força durante a gravidez. 

 

As nossas ideias e expectativas sobre a gravidez são fortemente influenciadas por factores sociais e culturais. A família em que crescemos também tem um papel essencial: talvez tenhamos sido filhos únicos e, por isso, desejemos uma família com muitos filhos ou, então, achamos que ser filho único é o ideal. Talvez tenhamos sido adoptados e desejemos passar pela experiência do que seja ter laços biológicos. Naturalmente, todos temos uma personalidade única e uma rede de relações e amizades que ajudarão a formar a nossa vivência da gravidez. O ambiente social onde nos encontramos inseridos (vizinhos, colegas, associações...) também influenciam a complexidade desta vivência.

Psicologicamente, uma gravidez significa um momento de crise: “a point of no return”. Tal como a primeira menstruação não tem retorno possível, a gravidez é também um marco importante no desenvolvimento na vida de um ser humano. Talvez a expressão “momento de crise” tenha uma conotação negativa, no entanto, de certa forma este é o objectivo: 'crise' significa que a gravidez é um período durante o qual ocorrem grandes mudanças (a passagem para a maternidade e paternidade), em vários aspectos da vida, num espaço de tempo relativamente curto.

Psicologia da perda de uma gravidez

Leon (1990) descreve a perda de uma gravidez como “uma crise dentro de uma crise”. Mais uma vez, tudo acontece num período totalmente inesperado de mudanças, durante o qual os casais têm que procurar encontrar um caminho, vivendo constantemente emoções conflituosas entre estarem grávidos e já não estarem grávidos. Depois da alegria e da exaltação da gravidez, segue-se o desespero, a tristeza e a dor... para alguns casais é o primeiro confronto com a morte.

Esta perda é multidimensional, quer dizer, trata-se de uma perda sentida a vários níveis e em várias áreas da vida. Não é apenas a perda de um bébé, uma criança, mas também a perda da auto-estima como pais, sentimentos de culpa, vergonha e falha e também a perda do “estatuto de gravidez” que podia ser acalentado com carinho. Frequentemente surge o medo pela perda da fertilidade e da própria saúde. Por último, muitos casais sentem que, de certa maneira, perderam o controlo sobre a sua vida.

A perda é também uma perda familiar, na qual os pais, irmãos e avós estão envolvidos de alguma forma. A perda de uma criança durante a gravidez tem um grande impacto na vida conjugal: a relação com o conjuge pode durante algum tempo tornar-se difícil, porque cada um elabora (“trabalha”) a tristeza à sua maneira, ou então tornar-se muito intensa, se os dois vivenciarem a tristeza e a perda em conjunto. As circunstâncias da vida, planos para o futuro e objectivos são normalmente influenciados pela perda: os planos para uma mudança no ritmo de trabalho, se o casal comprou uma casa espaçosa, com vários quartos e um grande jardim, e agora não sabe o que fazer com tanto espaço, receando não conseguirem ter um filho, ainda que não consigam imaginar uma vida sem filhos.

Uma paciente descreve a situação familiar depois do seu aborto durante uma das nossas sessões:
“O Natal sempre foi uma ocasião muito especial para a minha família. Tive um aborto no dia 23 de Dezembro e fiquei com a sensação que a minha família não me tinha apoiado. Passei todo o tempo ocupada com as preparações do jantar de Natal... mas todo o tempo estive com o sentimento que tinha perdido algo que era ‘somente meu’... e ninguém reconhecia este meu sentimento. Foi extremamente difícil para mim despedir-me de ‘estar grávida’. Não consegui comer ao jantar de Natal como nos outros anos. Para a minha família, era como se nada fosse, mas para mim... para mim era o meu ‘bébé’, o meu ‘filho’.”

O marido de uma paciente descreve abertamente na sessão que tive com ele e com a sua esposa:
“Depois do nosso segundo aborto tornou-se, de repente, mais difícil para mim. Apercebi-me que iria ser um ‘papá velho’ ou, pior ainda, que os meus pais, talvez nunca fossem avós. Sentia uma grande pressão para tentarmos engravidar de novo, para mim o relógio não parava... mas entendi que a minha mulher não conseguia suportar uma nova gravidez. Cada vez se tornava mais complicado para os dois.”

Quando confrontados com o aborto ou o aborto recorrente sentem-se presos entre “algo e nada”. Os futuros papás e mamãs começam imediatamente a imaginar a vida com a criança mas, para os outros à sua volta, é como se nada tivesse mudado. Esta perda é muito diferente da perda de um ente querido, com quem convivemos durante muitos anos. Sobre esta pessoa é possível trocar recordações com os que nos rodeiam. Socialmente, esta perda de uma ‘parte do nosso futuro’ é muito pouco reconhecida: não há qualquer “objecto” visível para fazer o luto, há poucos ou nenhuns rituais de luto. Reacções dos que nos rodeiam, tais como: “é melhor assim, imagina que o bébé era deficiente”, “da próxima vez vai correr tudo bem, ainda és muito nova, tens tempo para engravidar novamente”, têm como objectivo nos acalmar, no entanto, dão a sensação que estão a minimizar os nossos sentimentos. Algumas pessoas nem sequer falarão sobre o assunto e este “silêncio” é para muitos casais ainda mais doloroso.

Aborto e aborto recorrente: os sentimentos mais comuns

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define “aborto recorrente” como: três ou mais perdas seguidas, antes da 22ª semana de gravidez. De acordo com as estatísticas, 1% dos casais irão ser confrontados com aborto recorrente (Bagchi & Friedman, 1999).

Uma reacção normal e saudável à perda de uma gravidez é o “luto” (Covington, 2001). O luto é uma reacção individual, mas também universal, a uma situação de perda. É um “processo de cura”: temos que aprender a sobreviver sem o nosso amado bébé e continuar a nossa vida. Um aborto é um importante acontecimento na vida, mas o impacto deste é diferente para cada pessoa. Os sentimentos mais comuns são: saudade, desespero, perda de controlo, tristeza, choque, confusão, pena, raiva, culpa, o sentimento de ser responsável pela perda, vazio, pânico, solidão, stress, angústia, falta de auto-confiança...

O luto processa-se geralmente em fases: a) um padrão repetitivo em que agora está tudo bem e daqui a pouco já nada está bem; b) mais tarde percebemos que a vida continua; c) e precisamente quando pensamos que já ultrapassamos, somos invadidos por uma onda de tristeza. A isto chamamos “luto-sombra”: é como a nossa sombra, sempre presente, mas nem sempre à vista. Datas importantes (o dia previsto do parto, o próprio aniversário, o dia em que a gravidez foi descoberta, dias festivos...) podem activar novamente os sentimentos de luto.

Muitas mulheres e homens têm, também, algumas queixas físicas: dôr de cabeça, dôr de barriga, falta de ar, prisão de ventre, batimentos cardíacos rápidos, problemas em dormir, pouco apetite, etc.. Nos contactos sociais é possível que tiremos menos prazer de conviver com outros e, por isso, teremos tendência a nos isolarmos, por um período curto ou longo. Algumas mulheres e homens passam por momentos de extrema dificuldade quando são confrontadas com a gravidez de outros ou com bébés. Por isso, evitam essas pessoas ou situações, para que não sintam a dor. Por último, também poderá haver “sintomas cognitivos”, ou seja, determinada forma de pensarmos as coisas: sonhos bastante “reais”, pesadelos, pensar constantemente no mesmo e, tomar decisões com dificuldade são sintomas bastante comuns.
Estas são maneiras de expressar o luto e a perda mas, o modo como individualmente vivemos a nossa própria perda, pode ser muito diferente.

O aborto recorrente é um acontecimento muito traumático: muitas mulheres vivem o “filme psicológico” dos acontecimentos à volta do aborto em pormenor, meses e até anos depois do aborto. Muitos homens e mulheres querem ir à procura da causa: “porque é que isto aconteceu?”, ou ainda, “porque nos aconteceu isto a nós, neste momento?”. Algumas mulheres tinham já a “sensação” que algo não estava a correr bem com a gravidez; para outras, o aborto foi completamente inesperado.

De uma forma ou de outra não há maneira de se prepararem para o que não é possível evitar: a perda da gravidez e do bebé. A sensação de desamparo e a necessidade de culpar alguém pelo sucedido são geralmente as primeiras reacções. Muitas mulheres têm a sensação que se decepcionaram a si próprias, ao seu marido e à sua família. Duvidam da sua fertilidade e capacidade para conceber novamente e levar a gravidez a termo. Estão zangadas com o seu corpo porque este não lhes quer oferecer o que elas tão intensamente desejam. Em abortos recorrentes as novas perdas farão a dor e a tristeza aumentar: cada perda é seguida de um novo período de luto. A imagem de si própria é posta em causa quando a mulher sofre um aborto várias vezes. O corpo torna-se um “objecto” ambivalente que não quer funcionar. A insegurança torna-se uma constante: correrá uma próxima gravidez bem?

Diferenças entre o homem e a mulher

A perda é, normalmente, tão importante para a mulher como para o homem, mas a mulher pode viver a perda de uma maneira muito diferente ou, então, em momentos diferentes. Isto faz com que, por vezes, os dois tenham que procurar o seu próprio caminho, para que a determinada altura seja possível o encontro no cruzamento deste e, a partir daí, caminharem juntos. É necessário ter em conta que no processo do luto o importante é o caminho que percorremos e não o destino a que iremos chegar. Rosenblatt (2006) descreve o impacto do luto numa relação como “the dance of closeness and distance”: nunca demasiado longe um do outro ou demasiado próximo, no entanto, o luto muda as circunstâncias, a forma e as condições da “dança” da proximidade e da distância.

Uma paciente de 31 anos descreve:
“Nós enfrentamos a perda de maneira completamente diferente. O ‘T’ não fala, por norma, muito e eu sentia-me extremamente sozinha. Como se fosse a única mulher do mundo que tinha que passar por tudo isto. O T não conseguia entender de modo nenhum... ou não queria entender. Tornou-se algo tão sério que quase nos separamos.”

É uma pena que os futuros papás sejam, muitas vezes, esquecidos ou, “sem querer”, colocados de lado: os procedimentos médicos no serviço de ginecologia, basicamente, têm a mulher em consideração e, quando chegam a casa, todos estão preocupados em como a mulher se sente. Os homens veêm-se muitas vezes perante assuntos práticos e organizatórios. Na realidade, a perda e a tristeza pode ser tão grande para os homens como é para as mulheres. É importante dar a devida atenção às suas emoções e sentimentos.
É também normal que durante algum tempo a relação a nível sexual se processe de modo difícil. O contacto sexual não só é uma lembrança da gravidez, como pode também ser responsável por uma enorme descarga física e emocional, que algumas pessoas preferem evitar durante algum tempo.

Uma das minhas pacientes descreve numa das nossas sessões:
“Magoa-me muito que as pessoas telefonem ou encontrem o meu marido na rua e imediatamente perguntem “como é que Eu estou”. Provavelmente, nunca sequer ponderaram que o meu marido também perdeu um filho. Estava zangada com toda a gente porque não entendiam que Nós tinhamos perdido um filho. Tornou tudo mais difícil para o meu marido.”

Infertilidade e aborto recorrente

Problemas de fertilidade e abortos são ambos experiências devastadoras. Quando alguém passa por estas duas experiências em conjunto, isto tem um impacto ainda maior na sua vida e o processo de luto torna-se muito mais complicado. A perda “invisível” torna-se, por assim dizer, dupla. A confrontação com problemas de fertilidade é, já por si, uma grande “carga” na relação conjugal. Os ciclos repetitivos de esperança e desilusão, os tratamentos que exigem bastante energia, emocionalmente e em termos de tempo, fazem com que a perda de uma gravidez e a perda do filho tão desejado seja ainda mais dolorosa.

Abortos de recorrência e tratamentos falhados de fertilidade ou até mesmo gravidezes bioquímicas, são muito semelhantes, até pela intensidade e tipo de sentimentos com que somos confrontados. Cada pessoa vive estas situações de forma diferente, mas num tratamento falhado muitas mulheres sentem-se como se tivessem perdido um filho. Elas fazem o seu luto como o fariam se tivessem tido um aborto. A perda tem que ser “trabalhada” e têm que dar um lugar a esta perda. Esta perda, na maior parte das vezes, não é reconhecida pelo ambiente que rodeia o casal (centros de fertilidade, família, amigos...) e, devido a isso, muitos casais estão completamente sozinhos na sua perda e tristeza.

Nova tentativa de engravidar

É muito cedo? Esperamos tempo demais? E se não mais conseguirmos engravidar? Na próxima gravidez vai acontecer novamente uma perda? Estas são algumas das perguntas com as quais os casais se confrontam quando começam a pensar numa nova gravidez. É essencial que a(s) perda(s) anteriores tenham sido “trabalhadas”, que se tenha feito o luto antes de uma nova tentativa de gravidez. Cada casal tem o seu tempo, a sua “história”, os seus medos, as suas preocupações e os seus desejos.
Muitas vezes, os casais concentram-se mais na gravidez depois de um ou mais abortos: a relação entre o casal e a vida sexual pode estar, durante algum tempo, debaixo de pressão. Para algumas mulheres, engravidar novamente torna-se uma “obsessão” e estão constantemente a pensar sobre o assunto. Outros acreditam que uma nova gravidez irá curar a dolorosa experiência da perda. A verdade é que isto acontece, mas não é frequente. Uma nova gravidez é caracterizada por muitos medos: a gravidez despreocupada deixa de existir.

A comunicação aberta e sincera entre o casal e os profissionais de saúde é essencial. Se existirem riscos (quer a nível médico, quer a nível psicológico) numa nova tentativa de gravidez estes têm que ser discutidos. Talvez nessa altura não estejamos preparados para “escutar” o que os profissionais de saúde têm para nos dizer. Talvez não queiramos ouvir que ainda é “muito cedo” ou que o medo de ter um novo aborto nos impede de tentar uma nova gravidez. Controles extra ou esforços sinceros para nos acalmarem, vindos da equipa médica, podem ser extremamente valiosos durante uma nova tentativa de gravidez e, deste modo, ajudar a reduzir o medo.

Acções de Ajuda

A escolha definitiva sobre como e quando despedir-se do filho é sempre do casal. Mas eles deverão poder fazer uma escolha informada. A educação psicológica e a informação são de extrema importância. Em geral, há certas acções que podem ajudar-nos a encarar a realidade da perda e as suas consequências. Alguns exemplos:

- criar lembranças: fotografias, uma peça de roupinha, um peluche;
- um ritual de despedida: plantar uma árvore, uma pequena cerimónia;
- diário: escrever sentimentos e pensamentos diários ajuda a tê-los mais controlados e a podermo-nos distanciar dos mesmos;
- contacto com pessoas que passam pela mesma situação, amigos, grupos de apoio, psicólogo, assistente social;
- procurar informação: médica e psicosocial;
- se possível, ver o bébé, tocá-lo, agarrá-lo nos braços, dar-lhe um nome;

A importância e a oportunidade de despedir-se do bebé torna-se clara depois de uma sessão com uma das minhas pacientes quem após a perda do seu bébé às 15 semanas, veio a uma consulta. No hospital em que fez o parto não havia apoio psicológico. Ela partilhou o seu diário comigo...

“Nas horas que se seguiram tive que decidir se te queria ver e agarrar nos meus braços. Foi o maior dilema da minha vida. Sentia-me tão fraca e triste. Tinha a sensação que não conseguiria aguentar mais nada. Tenho tanta, tanta pena por te ter deixado para trás, no frio... entre estranhos... não te ter dado segurança e o meu calor. Eu daria tudo, tudo para te poder ter nos meus braços, em segurança, falar contigo, dar-te um beijo infinito e cheio do meu amor... Deixaste-me tão cedo, não fazes mais parte da minha vida, arrancaram-te de mim e não mais te trouxeram de volta. Tu e eu, tu sem mim, eu sem ti. Deixei passar a primeira e última oportunidade, a única oportunidade, de te amparar... de te ver, de te sentir e te cheirar...”

Quando os profissionais de saúde seguem os pacientes depois de uma perda de gravidez, é importante que consigam criar um “espaço seguro”, onde as emoções fortes possam ser exprimidas. Escutar sem julgar é imprescindível para conseguir falar sobre os sentimentos do casal. Nem todos os casais experienciam a perda como um acontecimento dramático. Alguns homens e mulheres não necessitam de fazer luto. Embora se pensasse, há alguns anos atrás, que isto seria uma negação ou repressão e que seria uma forma negativa de lidar com a situação, sabemos hoje em dia que isto pode ser um processo normal e saudável. Há tantas reacções individuais e diferentes depois da perda: nós, como profissionais de saúde temos que as saber respeitar.

(*) Tradução de Elsa S., a partir de artigo originalmente publicado na revista da Associação de Fertilidade Holandesa (FREYA).
 

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publicado por Associação Projecto Artémis® às 18:13






Espaço de partilha com objectivo de diminuir a falta de informação técnica e emocional a mulheres que vivenciam o luto da perda de um bebé ao longo da gravidez, bem como quebrar o Pacto de Silêncio resultante de todo esse processo de luto na Perda Gestacional.


Direcção A-PA

projectoartemis Sandra Cunha, Psicóloga desde 2005 da Associação Projecto Artémis, tem vindo a desenvolver o seu trabalho desde essa data na área da Perda Gestacional. Desde Junho de 2011 está como Presidente da Associação Projecto Artémis, procurando quebrar o silêncio, alienado o seu conhecimento técnico com o da realidade da perda de um filho. Perdeu um bebé em 2007, após 2 anos de trabalho como psicóloga da Artémis, o que lhe permitiu reunir à técnica o conhecimento árdua de ter vivido na pele a perda de um filho.

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