Consultório de Perda Gestacional
Espaço de partilha com objectivo de diminuir a falta de informação técnica e emocional a mulheres que vivenciam o luto da perda de um bebé ao longo da gravidez, bem como quebrar o Pacto de Silêncio resultante de todo esse processo de luto na Perda G
"o medo, esta nuvem negra, não nos abandona" - nova gravidez mãe Susana
29 de Julho de 2017
Faz hoje uma semana que saí do hospital de mãos vazias, de útero vazio... pela terceira vez. Mas desta vez é muito pior. A dor é muito maior. Eu vi a minha menina, era linda, tão pequenina, tinha 16 semanas, e pode parecer absurdo, mas parecia o pai a dormir. Nunca mais vou esquecer aquele rostinho. Estou triste e desiludida comigo porque não a abracei e agora já é tarde, não sei onde ela está, dizem que o corpo foi para autópsia. Naquela hora não temos cabeça para pensar em nada. Sinto que arrancaram um pedaço de mim e sei que nunca mais serei a mesma pessoa. Havia uma alegria em mim que era expontânea e agora desapareceu. Tento agarrar-me ao que a minha vida tinha e ainda tem de positivo: a minha filha, o meu marido, o meu trabalho, o projeto da casa nova, porque a vida não parou. Mas tudo o que é bom, o que acontece de positivo tem um sabor estranho, amargo...
1 Setembro de 2017
As dores fortes e as hemorragias ainda não pararam. A ecografia revela restos placentários e é marcada uma curetagem. Entrei no hospital de manhã e esperei até às 15.00h para entrar para o bloco. Não me lembro de mais nada a partir do momento que me injectaram a anestesia. Por volta das 19.00h estou de regresso ao quarto. A um quarto exactamente igual ao que fiquei no dia em que morreu e nasceu o meu anjinho. Não consigo dormir ali. Começo a sentir pânico e não consigo estar deitada, sentada ou de pé! Uma sensação de claustrofobia insuportável... não me lembro de alguma vez me sentir tão agitada. Chamo a enfermeira e exijo sair naquele momento. Sei que é uma loucura e corro enormes riscos, é contra as indicações médicas, mas saio mesmo, acho que perceberam que não me iam segurar ali contra a minha vontade. Chamo o meu marido para me ir buscar. Assino um termo de responsabilidade e eram quase 21.00h quando saio e meia zombie desço a via rápida do hospital de Braga ao encontro do meu marido... preciso de andar e sentir o ar da rua. Que alívio !
Também o meu marido nesse dia tinha estado no hospital. Estranhas dores de cabeça têm-no incomodado, os TAC’s e ressonâncias não revelam nada, os médicos dizem que deve ser stress. Não sabia que lhe tinham dado tranquilizantes. Sente-se sonolento e sem condições para conduzir. Ligo para todos os hotéis de Braga que conheço e estão esgotados porque é período de férias. Vejo-me sem alternativas e decido conduzir até casa. Peço a Deus que me guie nesta hora, porque também me sinto em péssimas condições para levar o carro por estradas apertadas e cheias de curvas, mas felizmente chegamos a casa sem contratempos.
8 de Setembro de 2017
Vamos para fora do País durante uma semana. A ideia é nestas mini-férias tentarmos recuperar um pouco deste último golpe e ganhar forças e ânimo para prosseguir. Acho que temos feito tudo o que é humanamente possível para fortalecer a nossa relação. É juntos que temos de continuar. Sei que não tivemos culpa, embora nos sintamos constantemente culpados. Assinar um documento que termina com a vida da nossa bebé porque tinha Trissomia 21 e complicações cardíacas é algo que nunca iremos aceitar. É uma pena muito pesada e uma dor angustiante. Ninguém devia ter que passar por isto.
19 de Setembro de 2017
Voltámos de férias, regressamos aos nossos trabalhos e retomamos o projecto da casa que estamos a reconstruir. É algo que nos une e motiva. Também nos distrai, tanta agitação e problemas para resolver acabam por nos manter anestesiados e assim adormecemos a dor. Preferimos andar cansados e com a mente ocupada. Evitamos pensar ou falar no assunto.
4 de novembro de 2017
Existe sempre algo que nos arranca deste entorpecimento e hoje foi o dia.
Somos convidados para um jantar de colegas de faculdade do meu marido. Um casal tem uma menina de quase 2 anos e o outro casal um rapaz de 7, muito amorosos e lindíssimos.
O jantar decorre animado, fala-se do passado, dos professores, das profissões e depois começam os relatos sobre os filhos... as gravidezes, os partos, as experiências de cada um deles com os seus bebés, até à altura em que alguém diz para o meu marido: “... tens que tentar pá! Não demores muito que já estás mais que na idade... isto dá trabalho mas é maravilhoso. Se pudesse tinha 3 ou 4!”
Sinto que levei um murro no estômago... esforço-me por ficar normal, mas tenho vontade de gritar que também nós temos 3 filhos (o Afonso, o Henrique e a Maria) só que são anjos e nunca poderemos sentir essas maravilhas com eles!
Mas controlo-me e penso que tenho que agir com naturalidade para ninguém perceber o desconforto. É a primeira vez que os vejo, não exponho os meus sentimentos assim e não vou expor o meu marido, que está apático e sem reação. Silêncio absoluto da nossa parte. Acho que não dissemos uma sílaba durante todo o tempo em que a conversa prossegue neste tema, até uma das senhoras dizer que conhece um casal com vários filhos que adoptou uma criança com síndrome de down. O outro casal elogia a coragem e um deles diz com frieza: “eu se soubesse que ia ter um filho assim deficiente acabava logo com tudo! Desculpem lá mas é o que sinto!”
Outro murro, levanto-me com a desculpa de ir à casa de banho, sei que vai ser difícil conter as lágrimas e grito em silêncio: QUE NUNCA SAIBAS, QUE NUNCA SINTAS!!!
6 Dezembro de 2017
Já estamos na casa nova. Depois de tantos meses de obras e complicações, chegou finalmente o dia. Parece ironia, mas a menstruação está atrasada quase uma semana e eu costumo ser certinha como um relógio suíço. Faço um teste: resultado positivo.
Não festejamos como era costume e não fazemos planos. Negámos a nós próprios o direito de sentir qualquer felicidade, qualquer emoção. Depois de tudo o que aconteceu sinto uma angústia enorme só de pensar que posso ter que passar por tudo outra vez. Na última consulta de planeamento familiar a médica disse exactamente isso: “Se voltarem a engravidar, têm que estar preparados para mais más notícias.” O pior ou o melhor (nem sei) é que agora estamos, e o medo, esta nuvem negra, não nos abandona. O quartinho de bebé que projectámos está ali, mesmo em frente ao meu. Enchi-o de tralhas, evito imaginá-lo decorado com um bercinho entre as duas janelas como era meu sonho.
Este nó no estômago não passa e agora só peço que Deus nos ajude e nos dê forças!
Susana