"O Vicente foi um bebé muito desejado (como deveriam ser todos os bebés). A gravidez decorreu normalmente, excetuando um pequeno descolamento de placenta às 24 semanas. Repouso, nada de grave. A dpp era 22 de março de 2015. Nunca foi uma data ansiada por mim, nem o parto o foi: era um momento no qual me recusava a pensar. Às 38 semanas, o médico disse-me que o meu filho iria nascer no máximo dentro de uma semana. Aquela ideia assustou-me: não estava preparada para perder a minha barriga. Nesse dia, o médico começou a preparar o nascimento do Vicente: um toque para acelerar o processo de dilatação. No dia seguinte, muitas contrações e sai o rolhão mucoso. As contrações param. Uma semana depois, dia 18 de março, novo toque: a dilatação não evoluía. Voltei no dia 19, já com mala: não tinha evoluído, outro toque, vamos esperar... Dia 20, o nivel do liquido amniótico começou a baixar: o parto tinha de ser induzido. A médica que me observou disse que só voltaria a sair da maternidade com o meu filho nos braços... Enquanto esperava, o meu filho mexeu como nunca tinha mexido antes como que a dizer: "Mãe, vamos embora, vão-nos separar!!!" O dia 20 foi passado a induzir o parto, mas não havia evolução. À noite, uma tentativa para romper o saco das águas, rebentaram perto da meia noite. Muitas contrações mas a dilatação não evoluía. Dia 21, sábado, passaram-me para a sala de partos, oxitocina, dores mais fortes, bebé muito subido, epidural...até àquele momento, o Vicente tinha estado bem, quando encaixou, o batimento cardiaco tornou-se irregular. Os médicos mandaram sair o pai, tinha de ser feita uma cesariana rapidamente. Senti que havia muita preocupação e ouvia: "Este bebé tem de sair já!". Foi tudo muito rápido, a epidural ainda não tinha começado a fazer efeito e, por isso, quiseram-me adormecer. Não! Enquanto não visse que o meu filho estava bem, suportaria qualquer dor. Nasceu às 14h45, ouvi-o chorar, vi-o ao longe... ele tinha nascido bem e aí sim, permiti-me sentir as dores e pedi para me adormecerem. Acordei com uma voz que dizia: "O Vicente teve um problema, o Vicente teve um problema grave, O Vicente morreu..." Ainda atordoada achei que alguém tinha enlouquecido, e que esse alguém não era eu pois eu tinha-o visto, tinha-o ouvido, como é que agora me diziam que ele tinha morrido??!? Perguntaram-me se o queria ver, disse que não... não queria ver, não queria acreditar porque não podia ser verdade... Só me comecei a aperceber que alguma coisa tinha corrido mal quando o pai e a tia entraram a chorar. Pedi para ver o meu filho, como não o poderia ver?!?!? Trouxeram-mo embrulhado na fralda e na mantinha dele. Tão lindo, tão perfeitinho, tão pequenino... pedi-lhe para voltar para mim, vezes sem conta... Queria que ele abrisse os olhos e chorasse,
Pedi para ficar mais tempo com ele, não deixaram! Dei-lhe um beijo na testa, já a começar a ficar fria... é indescritivel a sensação de sentir a morte no nosso filho. Seguiram-se muitos papéis para assinar e muitas decisões para tomar: autópsia, funeral... quando a nossa cabeça bloqueou para o mundo exterior. A dor, a negação, a apatia e a revolta instalam-se. No meio daquela confusão, pedi uma fotografia do meu filho. A memória iria atraiçoar-me e eu não o poderia permitir... Os dias que se seguiram estão envoltos numa névoa- muita medicação, muita recusa, muita raiva: O que é que eu tinha feito de tão grave para merecer tamanho castigo? Na impossibilidade de atribuir culpas a alguém, atribui-as a mim e a Deus: a mim porque era mãe e tudo deveria ter feito para proteger o meu filho, a Deus porque ele me tinha tirado o meu filho, porque ele tinha permitido que aquilo tivesse acontecido... Queria sair dali, queria ir para casa... Saí daquela maternidade não com o meu filho nos braços como me tinha sido dito, saí completamente dilacerada... Voltei para casa, voltei para uma casa exatamente igual àquela que tinha deixado dias antes, mas nada voltaria a ser igual: tudo estava igual, mas jamais voltaria a ser igual... O funeral, a cremação, as cinzas... o continuar a ter o meu filho comigo, mesmo que fosse dentro de um potinho, mas ele estava ali, como sempre esteve desde o dia em que foi concebido. Separar-me dele era inconcebível, deixá-lo onde quer que fosse era impensável...